26 de ago. de 2007

Fui à biblioteca do Centro Culural São Paulo. Comecei a frequentar lá em 1995, 1996, por conta das peças de teatro e livros de história. Lembro que às vezes escutava um ou outro vinil, sentada nas poltroninhas da discoteca. Pedia algum álbum antigo do Chico, alguma coisa da Nara Leão, Secos e Molhados e por aí vai. Encontrava com alguns frequentadores assíduos, principalmente idosos que moram na região. Velhinhos que vão com suas sacolinhas de plástico e que ficam ora lendo um livro, ora puxando conversa com alguém próximo. Não ia lá há uns três anos, pois virei freguesa do lasar segall, onde o acervo de peças teatrais é bem maior. Mas o segall tá em greve até o dia 31 e fui no ccsp mesmo.
O caso é que vi, a distância, um dos velhinhos frequentadores do ccsp e senti um frio na espinha.
Era o mesmo velhinho, de cabelo branco e olhinhos de jaboticaba, com sua tosse baixa, enfisematosa. Eu já tinha o visto passeando entre as estantes, pegando livros de filosofia e poesia - há uns três anos. E ele estava lá, há três dias. Não o via há três anos e ele estava lá, da mesma maneira, anônimo entre livros, sedento por conversa.
Frio na espinha.
Lembro das conversas - sobre sócrates, sobre olavo bilac, sobre os iluministas, ... ele se orgulhava das pequenas pérolas intelectuais que ele ia colhendo e oferecendo ao procurar pequenas conversas que ele mantinha timidamente. Precariamente - seus olhinhos de jaboticaba iam e vinham de lugares na memória, muitas vezes olhavam mais pra dentro que pra fora. Ele parecia sempre sozinho e a biblioteca parecia seu único meio de conviver. Ele chegava de manhã e saia sei lá quando. Há três anos.
E ele estava lá há três dias. Me fez sentir a vida tão pequena, tão solitária.
Eu não quis falar com ele. eu senti vontade de chorar quando o vi, cabelos dessarumados olhando nas estantes de poesia brasileira. Como uma criança que quer brincar e ainda não tem traquejo, uma mulher que quer dançar e ainda não tem ritmo, um homem que quer declamar poesias e ainda é meio gago. Ele prossegue desajeitado, ele tenta. timidamente e solitariamente, ele tenta. Com um sorriso melancólico e quase sem esperança, ele tenta. Pacientemente, lhe falta a agressividade, lhe falta a raiva, a impaciência. Frágil.

22 de ago. de 2007

chuto portas e babo hoje. choro e cuspo dentes. uivo surdo. quero quebrar tudo com meus braços fracotes. corpo inerte. força em falta. catarro escorrendo do cérebro atravessa a garganta. CARNE.
NÃO. NÃO. Não tenho vontade de dizer sim. NÃO. hoje é não. Não dorme do meu lado. não respira na minha pele. seu hálito não. não você.
quero expor as minhas entranhas. quero agarrar tudo que tem dentro e por pra fora. NÃO VOU ME CONTER PRA TE POUPAR. VOCÊ NÃO ME CONTÉM!
cuspo seus dentes. chuto sua porta. escarro em você.
fôlego...
fôlego...
caio no chão. silêncio. lágrimas nascem do tremor. silêncio.
engulo. respiro.
eu não sei de mais nada...

21 de ago. de 2007

Penumbra

Era uma vez
Uma terra onde só existia a penumbra.
Era sempre noite de lua nova – a noite começou um dia, a lua nova ficou e nunca mais saiu. Os olhos dos bichos e das pessoas foram se acostumando com aquela penumbra e foram esquecendo o que era o sol. O único contorno mais forte que se via era o contorno da lua nova – de resto eram somente os fracos contornos na penumbra.
O caso é que um dia nasceu uma menina que, quando nasceu, também só sabia o que era a penumbra. Mas ela sonhava muito.
E nos seus sonhos apareciam imagens que seus olhos nunca tinham visto. Ela sonhava com o que nunca tinha visto, como se seus olhos tivessem alcançado lugares dos quais ela não havia se dado conta.
Aqueles sonhos foram lhe dando vontade de ver de verdade, acordada, o que ela só via em sonhos. Por mais que ela procurasse por ali algo que havia sonhado, ela não encontrava. Ela se deu conta que teria que ir a outro lugar pra ver acordada o que via nos sonhos. A vontade de achar aquele lugar foi tanta que ela um dia pulou um pulo que virou vôo e ela, levada por um vento, foi parar na lua.
E lá estava ela na lua que ela via de longe. Lá não tinha nada. Nem bichos, nem gente. E nem contorno nenhum pra se olhar – pois que se ela estava na própria lua, como iria olhar pro seu contorno? Ela chegou a sentir medo, pois era uma escuridão absoluta e ela estava completamente sozinha. Era um escuro muito escuro! Não se via nada. Nada mesmo. Então devagar, sem ela perceber, a lua foi girando.
Girando, girando... até que algo forte e intenso preenchia seus olhos. E aquecia seu corpo. E matizes preenchiam e desenhavam o que ela via, lhe lembrando do que ela havia vislumbrado em seus sonhos. Era mais forte do que seus olhos podiam agüentar e ela sentiu medo e espremeu os olhos – seguia de olhos abertos, espremidos mas abertos . Então, devagar, sem ela perceber, a lua foi girando.
Girando, girando... e voltou pra escuridão de novo. Ela continuou ali, girando junto com a lua por mais algum tempo. Indo da ausência absoluta de contornos pra explosão luz – sol! Ela já havia ouvido falar em sol, mas nunca tinha de fato visto o que era o sol. E seus olhos foram se acostumando a trabalhar daquele jeito novo – indo aos extremos, agora sem ter medo.
Mas não tinha ninguém ali. Nada. Nem bichos nem gente. Ela ficou com vontade de ter companhia de novo e desejou voltar pra terra daonde tinha vindo. Fechou os olhos. E sua vontade a levou de volta.
De volta a terra da penumbra, seus olhos não passeavam mais pelos extremos e ela se perguntou o que acontecia com aquela terra. Será que pra ver o sol e a escuridão ela precisaria ficar sozinha na lua? Mas porque naquela terra era sempre noite de lua nova? Por quê?
Então ela descobriu: aquela terra tinha parado de girar! Aquela terra da penumbra tinha parado de girar!
Aquela terra precisava girar de novo! Ela quis girar a terra de novo e fez muita força. Muita força.
Mas se deu conta que a terra era muito grande pra ela girar sozinha. E saiu pra procurar quem quisesse girar a terra com ela. Talvez se mais pessoas fizessem força pra girar a terra, a terra da penumbra voltaria a ver o sol e os contornos fortes e as cores de tudo...